Religiões ante o Comunismo

Ana Claudia de Souza
5 min readDec 29, 2020

--

Quando criança frequentei algumas vezes o Salão do Reino das Testemunhas de Jeová.
Meu pai era da congregação, ia às reuniões regularmente, e com frequência me convidava a acompanhá-lo, o que eu fazia por livre e espontânea vontade. Nesta época, tanto minha mãe quanto meu irmão já haviam deixado de ir. Minha mãe, uma católica não praticante, tentara frequentar no início do casamento mas não se identificara com os preceitos da religião deixando então de acompanhar meu pai. Meu irmão também ia quando criança mas perdeu o interesse com o tempo. O mesmo aconteceu comigo mais tarde.
Nunca foi uma exigência do meu pai que fossemos com ele às reuniões ou que nos convertêssemos, mas algumas tradições de sua religião sempre foram seguidas por todos nós. Um exemplo disso é o fato de não comemorarmos aniversários, Natal e Ano Novo entre outras datas que as Testemunhas de Jeová desaprovam a celebrações pois diferente de outras religiões, reconhecem suas origens pagãs.

Há alguns anos meu pai deixou de frequentar as reuniões mas não deixou de crer no que prega sua religião. Há alguns anos eu me tornei ateia e mais recentemente comunista. Dia desses eu e minha mãe estávamos conversando sobre a visão de paraíso das Testemunhas de Jeová e depois disso fiquei a refletir sobre como este paraíso tem alguns conceitos que conversam com os ideais comunistas.
Para eles este paraíso não será no Céu senão aqui mesmo na Terra. Não haverá dinheiro pois este não será necessário, visto que as relações comerciais se darão por trocas. E como você já deve ter visto nas tradicionais ilustrações onde crianças acariciam leões, os seres humanos viverão em total harmonia com a natureza.
Curiosa se alguém já havia feito este paralelo e já com a intenção de redigir este texto, pesquisei no Google: “Testemunhas de Jeová comunismo”. O primeiro link listado era um artigo de um site oficial da seita intitulado: “Como Deus considera o comunismo mundial” e eu não hesitei em clicar. Meu sentimento diante da leitura foi: desapontada, mas não surpresa.

Eu, que buscava algum tipo de associação entre o Reino de Deus e o socialismo me deparei com uma análise rasa da seita sobre esta ideologia.

Segundo a postagem, que reúne trechos de várias publicações da organização, “As pessoas inquietas e dessatisfeitas constituem bom terreno germinativo das ideologias modernas tais como o nazismo, o radicalismo e o comunismo do tipo russo”.
Comparar o Comunismo com o Nazismo, apesar de desonesto, não é nenhuma novidade visto que o Liberalismo faz isso o tempo todo afim de desinformar as massas e afastar cada vez mais o proletariado da possibilidade de sua libertação.

Segundo o texto as Testemunhas de Jeová são contrárias a qualquer ideia de revolução pois “‘Não há paz para os ímpios’, diz meu Deus.” (Isaías 57:21).

No trecho abaixo vemos a angústia de um capitalista em perder seus bens ser comparada ao medo que o proletário tem de ter sua vida ceifada pelo primeiro. Ao final, temos como solução para ambos a crença na salvação divina.
“Os financistas temem perder suas posses. A classe trabalhista teme não poder existir. Os estadistas, os políticos e os governantes temem o radicalismo ou bolchevismo. Com efeito, toda pessoa cuja mente não repousa sobre o Senhor se acha numa condição de temor e de angústia (Isaías 26:3)”.

Para eles, nenhuma revolta terá resultado satisfatório visto que nenhum sistema político será bem sucedido pois “o reino de Deus é o único governo que dará vida às pessoas”.
Inclusive, aqueles que creem nos preceitos desta religião geralmente se recusam a escolher candidatos políticos e anulam seus votos diante da obrigatoriedade de irem às urnas.

A ideia de que não há chance de existir uma sociedade justa para com seus cidadãos nesta dimensão vem acompanhada do conselho de que sejamos submissos às explorações dos sistemas políticos atuais.

Este vem sendo o modus operandi de diversas religiões (ou quem sabe de todas?) ao longo do tempo: tira-se a esperança de uma vida melhor para depois devolvê-la em nome de Deus. E desta forma temos milhares de pessoas conformadas com as mazelas que são obrigadas a enfrentar dia após dia, ano após ano, por séculos, pois a recompensa de sua submissão virá milagrosamente, ainda que depois de sua morte, não só para gerações futuras mas para todo e qualquer indivíduo que em vida tenha seguido os preceitos de Deus.

A quem isto favorece se não os poderosos que nos exploram? Ah não, mas para estes não há esperança pois “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus” (Lucas 18:24–25).Mas e quando este rico também é um fiel seguidor de Deus? Bom, neste caso há de se distorcer A Palavra afim de incluir os exploradores no plano divino.

Mas, voltemos ao texto das testemunhas de Jeová. Curiosamente, após aconselhar a não nos rebelarmos contra a exploração do homem pelo homem, o texto cita que ao longo dos anos a seita vem enfrentando governos comunistas pois estes não permitem a prática desta religião em seu território. Pois bem, não deveriam as Testemunhas de Jeová seguirem seu próprio conselho e conformarem-se com a impossibilidade de exercer sua fé nestes países? Ou esta recomendação só é valida para nos amansar diante do capitalismo?
Não me admira que países comunistas sejam contra este discurso inconsistente que favorece o imperialismo, sobretudo tendo a religião surgido na mais imperialista das nações.
Tal situação nos coloca diante do paradoxo da tolerancia: não podemos tolerar os intolerantes.

O comunismo não se opõe à religiosidade como alguns — por mal caratismo ou ignorância — afirmam. Mas de fato, um sistema político que extinguisse a exploração do homem pelo homem enfraqueceria em demasia diversas religiões visto que a maior parte delas tem como força motriz a exploração do medo. Além disso, muitos líderes religiosos perderiam com a queda do capital, portanto nada mais natural do que as religiões se oporem ao estabelecimento de um sistema político mais justo como visa ser o comunismo.

Após a leitura deste artigo fiz a mesma busca trocando porém o termo comunismo por capitalismo afim de verificar se haveria também uma publicação se opondo a este regime desigual e opressor. A busca resultou num texto hospedado no mesmo site. Este, nomeado como “Nem capitalistas nem comunistas”, trata-se de uma espécie de parábola que tem o intuito de desassociar a seita de quaisquer regimes políticos mas que termina se gabando de alguns cidadãos que “entraram na liberdade dos filhos de Deus, não sendo mais comunistas”.

Atualmente me identifico como comunista e estudo formas de participar ativamente da militância. Apesar de ter esperanças de presenciar uma revolução, sei que o trabalho é árduo e que é possível que eu não veja os resultados desta luta e que só as gerações futuras, talvez os netos dos meus amigos (pois eu nem pretendo ter filhos) possam colher os frutos plantados agora. Mas por mim tudo bem e creio que outros camaradas pensem isso da mesma forma, pois assim como a luta é coletiva a conquista também é. Me questiono no entanto se aqueles que creem na promessa divina ainda seguiriam os mandamentos bíblicos se não lhes fosse prometida uma recompensa direta, pessoal e intransferível.

--

--

Ana Claudia de Souza

Poeta, ilustradora, militante, periférica, ateia, marxista-leninista.