Ocupar é preciso?

Ana Claudia de Souza
5 min readMay 27, 2021

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Apesar de respeitar, não entendo muito bem esse fenômeno de querer ocupar lugares onde não se é bem vindo. Como por exemplo ser mulher e querer entrar para a maçonaria, ser gay e querer ser aceito na igreja… há de fato essa necessidade de ocuparmos todos os lugares independente do que eles tenham representado à sociedade ao longo dos anos?
É claro que é inadiável e imprescindível que grupos minoritários e minorizados tenham os mesmos direitos que aqueles que nunca precisaram lutar um dia sequer por isto, mas as religiões foram grandes aliadas da classe dominante em tolher os direitos de mulheres, negros, indígenas, gays… o clero endossou em nome de Deus a escravização de povos africanos, e este Deus ainda hoje legitima o massacre de palestinos em Israel.

Papa Francisco, líder religioso católico, é tido em grande estima por pessoas de esquerda que se consideram cristãs. Ele se mostra de fato mais progressista do que os papas anteriores e outros líderes religiosos. Numa rápida pesquisa no Google com os termos “Papa Francisco + casal gay” é possível encontrar diferentes notícias de momentos em que o sumo pontífice se declarou a favor da união civil entre homossexuais, parabenizou casais gays por batizaram seus filhos e etc.
A declaração do Papa sobre ser a favor da união civil entre homossexuais é bem vinda, pois apesar de não ser mais do que sua obrigação como cidadão do mundo querer que membros da comunidade LGBT tenham os mesmos direitos que pessoas não LGBTs, por ele ser uma figura que pode influenciar opiniões, é possível que leve alguns de seus fiéis a serem mais empáticos.
No entanto há também declarações onde o Papa afirma que não abençoa o casamento gay. Para algumas pessoas isto parece contraditório ou incoerente, porém direitos civis nada tem a ver com bênção, apesar de alguns casais gays ficarem descontentes por não poderem celebrar sua união na casa de Deus. Em meu ponto de vista esta deveria ser a menor das preocupações de uma pessoa que tem sua existência ameaçada em nossa sociedade.

Eu sei que a religiosidade está atrelada a subjetividade das pessoas e que eu tenho cada dia uma visão mais material de mundo. Mas veja, a bíblia diz: “Se um varão se deita com outro varão, como se faz com uma mulher, ambos cometeram uma abominação. Devem morrer. Seu sangue sobre eles” (Lev20,13). Isto não significa que quem crê nas escrituras está automaticamente fadado a rechaçar homossexuais, esta pessoa pode ser inclusive acolhedora por acreditar que Cristo o faria, afinal é sabido que Jesus andava com pecadores.
Gays são, portanto, pecadores aos olhos de Deus, mas ao se deparar com esta afirmação, algumas pessoas podem proclamar que quem crê nisso não é cristão de verdade. Veja bem, afirmar isto é contestar o livro no qual o cristianismo é baseado, portanto se você não concorda com isto, você é que não é cristão! Não seria mais fácil então constatar sua inadequação com a religião e quebrar o laço que você pensa ter com ela do que tentar mudar um dogma? Se você não acha que gays são pecadores, não é mais lógico compreender que você está em desacordo com o cristianismo do que esperar que o Papa entre em desacordo com a religião e autorize padres a celebrarem casamentos gays?
É como se após anos te impondo sofrimento, seu algoz te libertasse e isso não fosse suficiente pra ti. Como se você só ficasse contente após conquistar o afeto dele. Uma espécie de Síndrome de Estocolmo. Mas você não precisa deste afeto. Ninguém precisa. Mais compreensível seria que você ansiasse pelo fim do seu algoz.

Creio que foi muito exitoso o marketing feito sobre a ideia de que “Deus é Amor”. Tão bem sucedido que há mais pessoas que creem nisso do que na bíblia e que inclusive utilizam este argumento para contestá-la e questionar as igrejas.

O homem criou Deus a sua imagem e semelhança e por ser agora outro homem quer modificar a Deus também.

O Deus das escrituras não reflete mais a sociedade atual e por não se sentirem representadas por este Deus as pessoas que não conseguem conceber a não existência de um ser superior (ou a existência de um Deus injusto) tentam moldá-lo à sua crença atual.

Um crente que lê esta minha reflexão pode achar que eu estou falando em favor do conservadorismo: “É isto, para Deus, ser gay é pecado, a mulher tem de ser submissa a seu esposo e não há tempo que passe que possa mudar isto”. Mas acho possível sim que a igreja católica futuramente reconheça os casamentos gays que vêm sendo celebrados na Alemanha e algum Papa os considere legítimos autorizando que sejam feitos ao redor do mundo. Pode ser que as próximas gerações venham a presenciar uma mudança dos dogmas como conhecemos hoje assim como nós já presenciamos eventos antes inimagináveis. Mas isto apaga a miséria outrora e até hoje praticada com o aval de Deus? Apaga a Santa inquisição, a expropriação de terras indígenas, a escravidão, mulheres subjugadas e etc?

Em meu entendimento trata-se de um paradoxo: Se deus é imutável, gays sempre serão pecadores, mulheres sempre serão submissas, índios nunca terão alma e a escravidão terá sido justa. E se você discorda disso então não é um seguidor dele e não precisa se preocupar em ser aceito em sua casa; Já se a palavra dele pode ser contestada e adaptada, esta seria então a maior prova de que Deus é um produto do homem e de seu tempo e sendo assim poderia a própria existência dele ser questionada.

É claro que, não é dos conservadores que presumo tal reflexão, mas sim daqueles que são objeto deste texto, aqueles que fazem questão de serem aceitos por uma religião, doutrina, deus ou algoz por quem foram oprimidos por tanto tempo.

Somos seres materiais, dotados de consciência e subjetividade, capazes de ressignificar nossas crenças e ideias. Vejo nesta situação uma dinâmica de relacionamento abusivo, entre o ser humano e uma dessas ideias a quem demos o poder de nos controlar.

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Ana Claudia de Souza

Poeta, ilustradora, militante, periférica, ateia, marxista-leninista.