Fé, pressentimento e pandemia

Ana Claudia de Souza
3 min readJan 26, 2021

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Uma amiga da minha mãe que é evangélica disse recentemente que: vai haver um dia em que Jesus irá mandar as pessoas ficarem em casa e aquelas que o desobedecerem irão morrer”. Ironicamente ela disse isso fora da casa dela e dentro da minha em meio a uma pandemia. Me questiono se ela acredita que Jesus em pessoa irá aparecer na TV ou em vídeo a ser espalhado pelo Whats App para comunicar isso. Acho curioso pois isso vai contra uma parábola cristã. Nesta parábola um homem está se afogando, porém quando lhe é oferecida ajuda ele recusa, dizendo que aguardaria que Deus o salvasse. Ao morrer afogado ele questiona a Deus por que não o salvara, ao qual Deus responde: “Eu enviei uma lancha, um barco e um navio para salvar-te e você não prestou atenção aos meus sinais.”
A colega da minha mãe, assim como outros crentes, aparentemente não percebem os cientistas, epidemiologistas e profissionais de saúde como lanchas, barcos e navios enviados para nos salvar do afogamento. Para eles (ao menos para os religiosos brasileiros) mais confiável é a palavra de um chefe de estado sem qualquer formação, mas que tem Messias no nome.

Para quem crê num ser superior, sentir que ele existe é suficiente para acreditar nisso. Ao conversar com uma pessoa bastante religiosa e questiona-la como ela tem tanta certeza de que Deus existe e de que sua religião é a correta, ela provavelmente dirá que sabe, pois ela sente. E não é a toa, quando nos identificamos com algo, seja uma filosofia de vida, um estilo musical, uma ideologia… isso gera processos químicos que resultam em sentimentos e sensações. E como a religiosidade é algo totalmente ligado à emoção e racionalizá-la é proibido, visto que pode gerar questionamentos que resultem na descrença, aqueles que creem alimentam este sentimento, esta sensação de certeza.

Mesmo quem não é praticante de uma religião mas considera importante o desenvolvimento de sua espiritualidade tende a colocar os sentidos a frente da racionalidade quando alega ter um “pressentimento” por exemplo.

Acredito que esta supervalorização de nossas sensações seja um dos motivos pelos quais algumas pessoas, e as vezes até nós mesmos, não tomamos o devido cuidado diante da pandemia. Mesmo quem acredita e compreende a gravidade da doença, pode acabar se descuidado por não sentir que está infectado. E não estou me referindo a casos sintomáticos ou assintomáticos, pois conheço pessoas que mesmo apresentando sintomas preferiram crer que estavam com dengue ou uma crise de sinusite. Me refiro à ideia de pressentimento que citei mais acima e a fé de estar sendo protegido por Deus ou outros entes. Achar, crer, sentir, nada disso substitui um teste laboratorial.
A menos que você tenha passado os últimos 15 dias em casa, sem receber ninguém, sem sair para coisa alguma, sem receber uma entrega sequer, você não pode afirmar que não está infectado sem ter sido testado.

“Imunidade espiritual” infelizmente não existe.

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Ana Claudia de Souza

Poeta, ilustradora, militante, periférica, ateia, marxista-leninista.