Engrenagens de uma máquina desenhadas e pintadas com hachuras.

Artesão X Industria

Ana Claudia de Souza
3 min readDec 7, 2020

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Eu gostaria de lembrar qual o vídeo da Rita Von Hunty me inspirou a escrever este texto. Eu inclusive revi alguns para tentar encontrar mas não obtive sucesso, portanto, fica aqui o convite para que você assista todos eles!

Ao passo que a produção tornou-se industrial, cada trabalhador passou a ser responsável por uma parte da linha de produção, de forma que nenhum operário produz algo do início ao fim. O sistema de linha de produção permite que muito mais mercadorias sejam produzidas em menos tempo. Ao adquirir grandes quantidades de matéria prima a indústria passa a ter poder de barganha, podendo conseguir descontos que reduzirão seus custos e consequentemente o valor do produto final, possibilitando-a de competir com outras marcas.
O lucro fica a cargo da mais-valia advinda da exploração de trabalhadores por salários irrisórios.
Suponhamos que um funcionário da indústria de calçados decide se demitir e empreender fabricando seus próprios sapatos de forma artesanal afim de tentar ter condições melhores de vida e de trabalho.
Digamos que este artesão produza um par de sapatos por dia ao passo que a fábrica onde ele outrora trabalhara produz 10 pares por hora. Além disso ele não tem todas as regalias que uma empresa tem como descontos, prazos para pagamento, empréstimos e etc. É possível que o artesão cobre por seu produto o mesmo valor que a indústria afim de concorrer com ela? Obviamente não. Se ele o fizer, de certo que sairá no prejuízo. Para cobrir todos os seus custos e obter um lucro justo, o artesão precisará cobrar um valor superior ao da indústria e como consequência podem ocorrer duas situações: ele não consegue vender, pois as pessoas preferem pagar o preço cobrado pelas grandes corporações; ou seu produto é comprado por pessoas de alto poder aquisitivo que prezam pela qualidade e exclusividade de um produto artesanal e que tem condições financeiras de arcar com o alto custo.

Em meu ponto de vista, ambas as situações são tristes. Na primeira, o investimento de tempo e dinheiro do artesão são em vão e seu negócio não vinga. Na segunda, seus colegas trabalhadores, pessoas da mesma classe social que ele, não têm acesso às suas produções e estas ficam reservadas à uma elite.

Nos acostumamos a ouvir artesãos, prestadores de serviço e autônomos de modo geral reproduzirem o discurso liberal que diz: “se não pode comprar, não compre”. Outros explicam que para definir o valor de seu produto levou-se em consideração não só a matéria prima e sua mão de obra como também todo o investimento feito em estudos para aprender o ofício e técnicas utilizadas em sua produção. Isto é de fato bastante pertinente, mas dificilmente nos questionamos sobre por que o acesso ao conhecimento é tão caro e se isso é justo. O liberalismo vende o discurso de que somos livres para escolher quais marcas e produtos adquirir, mas se ao escolher determinada marca o trabalhador fica sem dinheiro para se alimentar por exemplo, temos de convir que este discurso é totalmente falacioso. Também não podemos dizer que ao artesão lhe foi dada a liberdade de escolher seu público visto que ao escolher um público com baixo poder aquisitivo estará assumindo o fracasso de seu negócio pelos motivos já anteriormente citados. Também não questionamos a escolha da indústria em pagar salários tão baixos quando, esta sim, poderia escolher oferecer melhores condições aos seus funcionários sem aumentar o valor do produto final. Não questionamos ainda sobre condições análogas à escravidão que algumas empresas impõem a seus funcionários que por sua vez são responsáveis por fabricar itens de luxo.

Talvez nós, consumidores de baixa renda, devamos ter um pouco mais de boa vontade com os camaradas autônomos e os valores de seus serviços. Estes profissionais talvez devam levar em consideração que quando alguém opta por não contratá-lo ou adquirir seu produto é possível que não seja uma questão de pura avareza senão de incapacidade econômica. E juntos temos que entender que fomos condicionados a culpar o indivíduo por problemas criados por um sistema econômico que invariavelmente submete a maioria de seus cidadãos a situações de calamidade para que uma minoria tenha acesso a quantidades exorbitantes de dinheiro e que portanto, faz mais sentido reivindicar o fim de tal sistema do que esperar coerência de uma máquina que opera desta maneira.

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Ana Claudia de Souza

Poeta, ilustradora, militante, periférica, ateia, marxista-leninista.