A inveja é um produto!

Ana Claudia de Souza
5 min readDec 24, 2019

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Recentemente, duas amigas minhas conseguiram assumir seus cabelos naturais. Uma após anos de química e a outra após anos de aplique capilar.
Achei incrível as duas (sem sequer combinarem) terem feito isso quase que simultaneamente pois creio que uma apoiando a outra vai ser um pouco mais fácil passar por essa fase inicial de inseguranças e etc. Como eu também tenho cabelo crespo e nunca fiz nenhum procedimento nele, elas vieram tirar dúvidas comigo. Em meio a dicas e trocas de experiências, começamos a falar sobre quão frustradas ficamos com nossas vidas e nossa imagem ao ver o Instagram de uma certa “influencer” (entre aspas porque eu odeio este termo, quem sabe um dia escrevo sobre). A YouTuber em questão teve sua fama conquistada graças às dicas de cabelos cacheados que dava, filmando de forma bastante caseira em seu quarto. Hoje ela tem sua própria linha de produtos para os cabelos e viaja de primeira classe.

O que chama bastante atenção de quem a acompanhou ao longo dos anos foi a mudança de sua imagem.
A moça que ganhou fama com o discurso de aceitação e de que não devemos nos render aos padrões de beleza impostos pela mídia e pela sociedade, hoje se rende a eles.

Junto com o dinheiro, as bolsas de marca e viagens internacionais, veio também o cabelo liso e loiro.
De fato, ela sempre afirmou que não adianta sair da ditadura da chapinha para entrar na ditadura dos cachos e eu concordo. Mas seu argumento era que podemos fazer qualquer coisa com nossos cabelos e corpos desde que por vontade própria e não por imposição.

Ocorre que os padrões não te obrigam a nada. Não há uma norma escrita que exige que tenhamos cabelos lisos. As pessoas (salvo exceções como exigências de uma vaga de emprego por exemplo) não alisam seus cabelos contra suas vontades. O que acontece é que nos é imputado o desejo de termos cabelos incríveis e corpos perfeitos.

Quando se expõe para esclarecer polêmicas sobre esta sua nova imagem, deixa claro que diferente de seus 17 anos quando ela alisava para agradar as pessoas e para se sentir bonita — já que haviam lhe convencido de que seus cachos eram feios — hoje ela brinca com seus cabelos e faz isso simplesmente porque ela quer! Mas a real é que tanto a adolescente de 17 anos que ela foi quanto a jovem de 27 que ela é querem a mesma coisa: serem aceitas.
Não é a toa que a ascensão econômica da moça veio acompanhada do alisamento (não definitivo, é importante ressaltar) de seus cabelos. As novas roupas, a nova casa e o novo cabelo passam uma imagem bastante clara: Riqueza. Essa é a palavra. Ela está com cara de rica. Ponto.

A riqueza tem cara e cor. E ela é branca.

A garota que outrora já se auto declarou negra, está cada dia mais branca. No evento de lançamento da sua linha de produtos capilares ela relatou sobre seu passeio de cabelos trançados por um shopping nobre de São Paulo. Demonstrou orgulho por estar fora dos padrões que os frequentadores do local estão acostumados a ver por lá. Uma moça de origem negra e cabelos afro tendo acesso a privilégios de gente branca.

Porém hoje, quando ela alisa os cabelos, acaba se assemelhando as pessoas que já frequentam estes locais comumente. Acaba se encaixando mais. Talvez assim se sinta mais parte de sua nova realidade porém acaba por contribuir com o estereótipo do rico com cara de europeu e com a premissa de que cabelo crespo não é chique ou elegante.
É como se todo o discurso que ela fez em seu passado, hoje se resumisse a: “Use seu cabelo crespo — Mas só enquanto não tem dinheiro para ter um cabelo liso bem cuidado.”

De fato, um cabelo natural é muito mais bonito do que um cabelo danificado. Mas o cabelo liso bem cuidado te faz parecer mais “rica”.
Ela certamente já inspirou muitas meninas a assumirem seus cachos e se aceitarem. Meninas que se identificavam com ela mas que hoje muito provavelmente a enxergam como mais uma mulher perfeita, dentro dos padrões e longe de nossa realidade.

Como citei mais acima, ela não recorreu a procedimentos químicos para alisar os cabelos e sendo assim, ainda aparece vez ou outra com seus cachos. Curiosamente, quando aparece assim o assunto é justamente o cabelo: como os cachos estão lidando com a tintura e chapinha, qual será a próxima novidade da sua linha de produtos ou ainda para esclarecer que seu cabelo ainda é cacheado. Quando está de cabelos lisos o tema da foto é qualquer outra coisa: a reforma da casa nova, a viagem para Los Angeles, o evento da marca de perfumes que ela foi.
Inevitavelmente, todo este glamour causa inveja.

A inveja é vista pela nossa sociedade como uma falha de caráter, quando na verdade é algo comum ao ser humano potencializado pelo capitalismo.

A inveja é um produto, o Instagram e o YouTube são os canais de venda, os youtubers e istagramers são os garotos propaganda e nós somos os consumidores.

No entanto é difícil julgar a YouTuber em questão por ela alisar os cabelos ou quando ela diz que “Não acha que nós devamos deixar de seguir modelos irreais, pois devemos almejar atingir altos patamares. Se ela conseguiu nós também podemos.” Este discurso — apesar de tacanho — é compreensível. Ela não é apenas agente do capitalismo. Ela é vítima também.
Além de ser inspiração inalcançável para outras meninas, ela também tem suas musas como Beyoncé e irmãs Kardashian.

Ao mesmo tempo que ela tenta, dentro de sua realidade, se aproximar cada vez mais de suas inspirações, as meninas que a segue tentam se aproximar dela. Fazer as mesmas viagens ou usar as mesmas roupas é inviável, mas alisar os cabelos é algo possível.

E assim, todo o discurso da YouTuber de que precisamos de representatividade cai por terra quando ela diz que “se você precisa dela para não alisar seu cabelo, então você tem um problema”.

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Ana Claudia de Souza

Poeta, ilustradora, militante, periférica, ateia, marxista-leninista.